Teatro Providência no Largo das Mercês - Joseph Léon Righini.

Teatro Providência no Largo das Mercês - Joseph Léon Righini.
Teatro Providência no Largo das Mercês - Litografia de Joseph Léon Righini. Fonte: Centro de Memória da UFPA

sábado, 29 de dezembro de 2018

Homenagem teatral II: Mendara Mariani (Maria de Lourdes Ramos Martins).



Mendara Mariani em espetáculo pela Escola de Teatro da UFPA, década de 1960.
Fonte: Acervo pessoal de Yolanda Amadei.


Por Denis Bezerra[1].

Quando entrei para o “mundo do teatro”, em 2006, ao passar no curso de Formação de Ator da ETDUFPA, (digo isso porque sempre fiz teatro, desde criança, na escola, na igreja, mas só acreditamos que somos atores ou artistas quando nos inserimos no estranho circuito teatral, que no caso da capital paraense é amador, de grupos, principalmente das regiões centrais da cidade) comecei a ouvir nomes de artistas, entre eles os mais velhos e experientes.
Além disso, como participava de um projeto de pesquisa[2] na UEPA, desenvolvido pelo grupo CUMA, como bolsista tinha por obrigação ler sobre a história do teatro local, como uma forma de preparação para as entrevistas e, depois, para a escrita de um artigo. Começamos a levantar nomes: Nilza Maria, Iracema Oliveira, Cleodon Goldim. Pensamos em Mendara Mariani, mas, por questões que não recordo agora, não conseguimos ouvir a atriz. Quando soube de sua morte, logo meio veio a ideia de escrever um texto para homenageá-la, e procurei uma entrevista entre tantos projetos que já participei e notei que não havia o registro. Deu-me uma tristeza, mas há disponível na internet uma participação da artista no programa Coxia, da TV Cultura[3].
Contudo, mesmo sem o registro da voz de Mendara Mariani, tive a oportunidade de encontrá-la pelos espaços de apresentações teatrais de Belém, em algumas vezes. Além disso, lembrei que durante o doutorado consegui vários registros fotográficos, críticas e anúncios jornalísticos, que me ajudaram a escrever minha tese[4] sobre o movimento de teatro amador e de estudante em Belém entre os anos 1940 a 60. Ao investigar sobre a escola de teatro da UFPA, os registros da participação de Mendara foram surgindo.
Sei que a artista merece um estudo aprofundado, esse texto que ora escrevo é uma singela homenagem, para que os leitores de meu blog possam conhecer um pouco sobre ela. Espero, em breve, poder realizar um estudo digno de sua memória. Dessa maneira, compartilho alguns registros coletados em jornais de Belém, da década de 1960.
Mendara Mariani integrou a 1ª turma do curso de Formação de Ator do antigo Serviço de Teatro da Universidade do Pará, atual Escola de Teatro e Dança da UFPA, a primeira instituição pública de ensino de artes cênicas na Amazônia brasileira. Fundada, oficialmente em 06 de maio de 1963, deve seu embrião um ano antes, em 1962, através de um curso de Iniciação Teatral, de forma experimental. O curso funcionava no horário noturno (19h30 às 23h), na Trav. Quintino Bocaiúva, 1632 e durava 03 anos.
Em 1965, formava-se a primeira turma da escola de teatro, Martins Pena. Fazia parte dela: Alberto Texeira Coelho Bastos [Albertinho Bastos], Augusto Rodrigues Corrêa, Cláudio de Souza Barradas, José Morais de Lima, José Nazareno Santana Dias, Maria de Belém Negrão Guimarães, Maria de Lourdes Ramos Martins [Mendara Mariani], Reynuncio Napoleão de Lima, Sônia Maria de Macedo Parenti[5].
Dentre tantos espetáculos, festivais e cenas curtas produzidas pelo Serviço de Teatro da UFPA, entre 1962 a 1965, Mendara Mariani participou de espetáculos como: O Velho da Horta, de Gil Vicente; Os Fuzis da Sra. Carrar, de Bertolt Brecht; Festival Shakespeare (Cenas de Shakespeare: Otelo, Hamlet, A Megera Domada, Sonho de Uma Noite de Verão, Ricardo III, Macbeth, O Mercador de Veneza e A Tempestade); Hécuba, de Eurípides; dentre outros.
Abaixo, algumas imagens que mostram a participação da atriz nos espetáculos produzidos pelo STUP.

Imagem 01 – Estreia na SAI o grupo teatral da Universidade local. 
Fonte: Folha do Norte (1962).


Imagem 02 – Maria de Belém Negrão e Mendara Mariani.
Fonte: Folha do Norte (1962).



Imagem 03 - Festival Shakespeare, promovido pelo Serviço de Teatro da Universidade do Pará (1964). Nas fotos, da esquerda para direita: Cláudio Barradas, Mendara Mariani, Nilza Maria, Renúncio Napoleão de Lima e Sônia Maria Parenti.

    Fonte: Folha do Norte (1964).

Após formada na Escola de Teatro, Mendara atuou na TV, na rádio, no cinema e em diversas produções teatrais. São vários os capítulos da longa e brilhante trajetória dessa atriz paraense, que me dedicarei em outro momento. Encerro essa homenagem com uma imagem (abaixo) e um texto escrito por seu colega de profissão, o ator Daniel Carvalho, para o jornal A Província do Pará, publicado em janeiro de 1966, na coluna Mulheres do Ano, destaques de 1965. Junto com Mendara, as mulheres homenageadas foram: Nilza Maria, pela atuação na TV e na Rádio; e Maria de Belém, como Mulher Notícia.


 Imagem 04 - Mendara Mariani, eleita a mulher de teatro de 1965.
Fonte: Jornal A Província do Pará.

Edwaldo,
Difícil escrever sobre MENDARA, sabe? É uma atriz e tanto. É tudo. Conheci MENDARA no Teatro da Paz vivendo a Mrs. Maungham da peça de Patrick Hamilton, “Luz de Gás”. Empolgou como só uma atriz autêntica pode empolgar. Depois acompanhei de perto sua carreira até aqui: uma sucessão de raras criações artísticas. MENDARA – sensível – trágica – meiga – rancorosa – irônica – suave – triste – vibrante – heroica – sublime -. Enfim, repleta desses sentimentos e vivência tão própria das grandes intérpretes. Isto, Edwaldo, não é tudo. E nem poderia ser. Como analisar uma grande atriz? Difícil, senão impossível. Afinal, elas existem para que a gente as sinta e quase nunca as compreenda. De onde quer que tenha surgido a ideia de fazê-la personalidade do ano, foi bom e justo. Obrigado por ter me escolhido para escrever sobre MENDARA. Creia que é uma responsabilidade e uma satisfação que poucas vezes encontramos.
Um abraço do
Daniel Carvalho.

Mendara Mariani, bravo, bravíssimo!



[1] Todos os dados utilizados nesse texto fazem parte do acervo de pesquisa de Denis Bezerra, autor desse texto. As fontes compõem a pesquisa documental realizada durante seu doutoramento pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia/UFPA (2011-2016). Além disso, faz parte do acervo documental do grupo de pesquisa que lidera: PERAU – Memória, História e Artes Cênicas na Amazônia/UFPA/CNPq.
[2] Memórias de Belém em testemunho de artistas (2005-2006). Coordenado pelas professoras Bel Fares e Venize Ramos, o projeto partia do registro das memórias de Belém antiga com o recorte temporal 1962 para trás, data em que a TV foi introduzida no Pará. Esse projeto dava continuidade a outro, desenvolvido em 2004, Memórias de Belém em testemunho de velhos. Como resultado dos dois projetos, o CUMA publicou um livro, organizado por Bel Fares: FARES, Josebel Akel. Memórias da Belém de antigamente. Belém: EDUEPA, 2010.
[3] Disponível no Portal Cultura, publicado em 22 de março de 2016: https://www.youtube.com/watch?v=k9cENXlJ2FI
[4] BEZERRA, José Denis de Oliveira. Vanguardismos e Modernidades: cenas teatrais em Belém do Pará (1941-1968). Tese de Doutorado, História, Universidade Federal do Pará. Belém, 2016.
[5] Fonte: Relatório do Serviço de Teatro da Universidade Federal do Pará (1967).

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Homenagem teatral I: Nazareno Tourinho


    Nazareno Tourinho (2012).
    Fonte: Denis Bezerra.

           
 O ano de 2018 já se encaminha para a eternidade, e sinto, ainda, a vontade e o compromisso de escrever sobre dois grandes artistas do teatro paraense que partiram para a constelação: Mendara Mariani e Nazareno Tourinho.

Ambos marcaram a cena teatral de Belém na segunda metade do século XX. Mendara, a atriz de teatro, rádio, TV e cinema. Tourinho, dramaturgo, dedicado a escrever sobre seu povo, sua cultura, seu lugar, sua gente. Foram duas partidas que deixarão saudades, mas acima de tudo eles fazem parte de nossa história do teatro. Nesse primeiro texto, vou me dedicar a Nazareno Tourinho; sobre Mendara Mariani escreverei um segundo.
A primeira vez que ouvi falar de Nazareno Tourinho foi em 2005, quando era aluno do curso de Letras da UEPA, participava de um projeto de pesquisa (Memórias de Belém em testemunho de artistas, coordenado pelas professoras Bel Fares e Venize Rodrigues, líderes, na época, do Grupo de Pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas/CUMA). Em 2006, fui fazer o curso de Formação de Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA e desde então iniciei um movimento que conciliasse as Letras e o Teatro, meus dois universos acadêmicos e artísticos da época. Foi nesse momento que a dramaturgia de Tourinho se desvendava a mim.
Cada integrante participante do projeto de pesquisa mencionado ficou responsável em debater um tema da cultura amazônica, a partir das entrevistas realizadas. Foi nesse momento que escolhi o teatro, e, como primeira tarefa começou a ler o livro do historiador Vicente Salles (1994), e procurar dramaturgos paraenses. Em época em que a internet não abrigava o mundo literário que encontramos nela hoje, frequentava o Circulante, espaço de empréstimos de livros no antigo Centur, hoje Fundação Cultural do Pará. Descobri, então, Lei é lei e está acabado, drama escrito por Nazareno Tourinho. Naquele momento, não havia estudos sobre nossos dramaturgos e suas obras, fato que motivou a investigar nossa produção literária dramática.
Anos depois, já professor na UEPA, ganhei de uma aluna, que sabia de minha pesquisa, um livro que, carinhosamente, tinha comprado para me presentear: Lei é lei e está acabado. Nas aulas de Literatura Amazônica, ou de Teoria Literária, sempre buscava apresentar aos alunos textos e autores que o cânone não privilegia. E nos projetos do CUMA, voltados para a recepção de autores amazônicos, lá estava eu com as obras de Tourinho.
Em 2012, quando cursava o doutorado em História/UFPA, consegui, finalmente, realizar uma entrevista com o dramaturgo. Mais do que coletar dados, fontes para a pesquisa, esse encontro foi marcado por um longo depoimento, que durou mais de 2h. Ele, em vários momentos, disse que tinha de me falar certas coisas porque ele era um homem experiente e queria que eu me tornasse um doutor compromissado com a ética, mais do que a estética. Recebi aquelas palavras e pude aprender com o dramaturgo que tanto gostava e estudava.
Em outubro desse ano ele partiu, não estava em Belém para dá meu último adeus, mas serei eternamente grato pelo que ele fez pelo teatro paraense, brasileiro. Em vários momentos da entrevista, ele fez questão de dizer que até uns 15 anos atrás ninguém se interessava pela obra dele, mas que a academia, naquele momento, se voltava para sua produção. Por isso, presto minha homenagem a esse escritor teatral, como ele se dizia e reiterou várias vezes na entrevista. Abaixo, compartilho um fragmento desse depoimento, no qual ele se apresenta e conhecemos um pouco da trajetória de vida desse grande homem que é Nazareno Tourinho.


Entrevista com Nazareno Tourinho (fragmentos) [1].

DB: Vamos começar pela sua apresentação: nome, data e lugar de nascimento.

NT: Olha, meu nome é Nazareno Bastos Tourinho. Eu nasci no dia seis de dezembro de 1934, em Belém, no bairro do Umarizal. Filho de um bombeiro e de uma mulher doméstica, tive cinco irmãos. Durante a minha infância, todos nós fomos muito pobres, porque na época o Corpo de Bombeiros não era uma instituição da polícia militar, como é agora. E o meu pai depois ficou desempregado, as minhas memórias de infância estão todas em barraca coberta de palha, a gente era obrigado a se levantar da rede furada quando chovia, porque a água caía em cima da gente. Vi muito a minha mãe pedir resto de comida de vizinho. Sofri muitas humilhações. Quando fiz 18 anos fui pro Rio tentar sorte, vê se arrumava emprego e de alguma forma sair da facha da pobreza extrema e tal. Passei muitas humilhações de necessidades no Rio. Quando consegui arrumar um emprego como balconista de uma loja, e ia ser efetivado, descobri nos exames médicos que estava tuberculoso. Aí fui internado no hospital de indigente no Rio de Janeiro, no hospital em Manguinhos. E tive que voltar pra Belém com todo o meu sonho desfeito, de arrumar emprego, de prosperar pra ajudar os meus pais, pra manter o resto da família, cinco filhos. Aí, recomecei a minha vida aqui em Belém, e isso é a minha origem, genética, social, que me honra muito. Eu tenho muito orgulho de ter tido esse passo, eu acho que foi muito enriquecedor, eu acho que é isso que dá substância à minha ideologia, à minha filosofia de vida. E eu sou muito agradecido a Deus por ter vindo da pobreza extrema, e eu sou muito identificado com os pobres e oprimidos.
Uma vez, eu disse que detesto os capitalistas, e me disseram que eu não devia falar assim, que eu devia dizer que detestava o Capitalismo, e não os capitalistas. Aí, eu disse, olha, mas essa é a minha realidade, porque o Capitalismo eu não detesto, eu só detesto os capitalistas, porque eles são culpados da organização social ser como é. Aí, eu detesto os capitalistas. O Capitalismo eu não detesto, eu odeio. Porque eu penso como Jean-Jacques Rousseau, os homens viviam em estado de graça, em plena harmonia, até o dia que um construiu a sua casa, passou uma cerca em redor dela e disse: “isto é meu!”. Foi criada a propriedade privada. Eu acho que toda a tragédia da humanidade tem raiz na propriedade privada, o sentimento de posse, que é a essência do Capitalismo e dos capitalistas. Então, o dia que criaram o dinheiro, criaram a infelicidade dos homens, que viviam bem, em harmonia, com espírito fraterno e não ambicioso. E o resultado final disso é essa sociedade moderna, que, na minha opinião, que a despeito a todas as suas conquistas e glórias, é sórdida, cretina, desonesta e cruel, porque ela é excludente. Ela é muito boa pra uma minoria, que acumulou a riqueza e que governa a maioria. O mundo sempre foi assim, os mais fortes sempre escravizaram os mais fracos, e os espertos enganaram os mais ingênuos. Então, tudo no sistema, no mundo moderno, é baseado nesse princípio, do acúmulo de riqueza e na dominação de um sobre outro. E eu acho isso sórdido e asqueroso. Eu me recuso, terminantemente, sempre me recusei e vou morrer com o mesmo discurso, a aceitar essa realidade. Eu sei que o oposto é impossível, mas eu acredito no sonho. Eu acho que é o sonho que dá sentido à vida.
Eu já disse uma poesia sobre a Ditadura, contra, evidentemente, que o sonho planta a semente que faz o futuro nascer. Eu acho que o Plínio Salgado, por exemplo, que foi um escritor brasileiro talentoso, embora de direita, escreveu uma frase genial, quando diz: “se és incapaz de sonhar, nasceste morto. Se sonhas e é incapaz de transformar o teu sonho em realidade, nasceste inútil. Se, porém, sonhas e transforma o teu sonho em realidade, então tu serás grande na tua pátria, e a tua pátria será grande em ti”.
Eu acho, então, que não é a beleza que é fundamental pra mulher, como disse o poetinha Vinicius de Moraes, é o sonho que é fundamental pra mulher e pro homem, de modo geral, pro ser humano. Eu não faço distinção nenhuma entre homem e mulher, eu acho que tudo é um detalhe de morfologia, de genética. Eu sou a favor de uma sociedade igualitária, inclusive no que se refere a homem e mulher, a raças, a costumes, eu acho que todo preconceito é burrice.
E, então, como eu dizia, eu sou um sonhador. Isso me torna uma pessoa desajustada da realidade social, mas eu tenho a minha realidade que não é social, a minha realidade íntima, o meu sonho é a minha verdade. E quanto ao desajustamento social, dou solene desprezo pra isso, e digo: felizmente sou um desajustado. E sou tão desajustado, que me ajusto muito bem ao meu próprio desajustamento. E no meu sonho, que é uma fantasia pra todas as outras pessoas, talvez, mas não pra mim, que é a minha realidade, no meu sonho estou certo, eu acho, meu sonho é a minha verdade, e porque eu sempre só quis ser uma coisa. Eu nunca quis ser um intelectual. Eu acho isso, absolutamente, desprezível. Eu acredito mais na agricultura do que nisso que chamam de cultura. Eu acho que está tudo errado, eu acho que tem que apagar tudo e começar de novo. E o que eu quero como autor de teatro? Simplesmente, ser um escritor popular, não erudito, isto é, um escritor do povo. Eu me sinto muito honrado e orgulhoso disso. Eu escrevo para o povo, com ele aprendi a pensar. Sou um pinto dentro do ovo, mas sei como o galo canta. Canto toda madrugada, pois nunca tenho preguiça. Não canto a mulher amada. O que eu canto é a justiça. Eu sou apaixonado pela justiça. Eu tenho uma obra social, que dá café com pão, sopa pra mendigo, mas sempre digo pros meus colaboradores, ou seguidores, não pensem que eu sou uma pessoa caridosa. Eu não sou. Eu gosto muito de Deus, meu movimento é religioso, espírita kardecista, gosto tanto de Deus quanto detesto, também, as religiões tradicionais, instituídas. Eu acho que todas elas mentem, todas elas estão enganando o povo, todas elas querem o poder, pra manipular a consciência das multidões, e tirar proveito disso. Então, eu sou esse tipo de pessoa e estou te dizendo logo, pra tu saber logo, de início, o meu prefixo musical, que tipo de autor você está entrevistando. Então, sou um escritor do povo, o que me preocupo é muito a questão da justiça. Eu digo pras pessoas que me conhece, que sabem que faço alguma caridade, que não pensem que sou caridoso, eu não sou caridoso. Eu gostaria de cultivar o amor. A caridade é uma expressão do amor, mas eu não tenho essa capacidade íntima. O que eu faço não é por amor ao próximo, na verdade é por espírito de justiça, entendeu? Eu não admito de me sentir feliz na hora que estou almoçando ou jantando num restaurante, onde, aliás, eu vou muito pouco, sabendo que na África, os negrinhos, coitados, as crianças estão morrendo de AIDS, e ninguém faz nada completamente pra mudar isso, a não ser discursos demagógicos. Nesse país, a despeito, apesar do todo, do pouco progresso, entende? que nós tivemos, felizmente tivemos alguns nos últimos anos, porque a esquerda conseguiu chegar ao poder, existe milhões e milhões de pessoas na miséria. A criminalidade cada vez aumenta mais, e isso é irreversível, e ninguém faz nada, porque ninguém muda os indicadores sociais de uma maneira significativa e que possa estancar, entende? A evolução da droga, do tráfico, do crime, de todas as mazelas sociais. É só discurso, só discurso muito bonito, principalmente na época de eleição, como aconteceu recentemente.
Então, eu sou um tipo de pessoa muito incomodada com isso, e, por causa de tudo isso, escrevi peças de teatro, só por causa de tudo isso. Deixa eu fazer mais algumas colocações introdutórias. Eu vejo muito colega de teatro dizer: “o teatro é minha vida!”. Eu nunca digo, eu acho isso uma grande mentira, ao menos que a pessoa, pelo seu caráter, seja um ator, ou uma atriz. Tem muita gente assim. Teatro é a arte de representar; representar é fingir uma coisa que não existe, o teatro é um faz de conta. Uma pessoa que diz que a vida dela é um teatro, quando isso realmente é, essa pessoa é uma mentirosa, que vive enganando todo mundo. O teatro não é a minha vida, o teatro é a minha arte. Eu escolhi o teatro, eu poderia ter escolhido uma outra arte, eu gosto muito de música, eu gosto muito de pintura, mas eu escolhi o teatro, porque o teatro tem duas faces. Uma vez, houve um concurso de trova, e o tema era teatro. E eu escrevi essa trova, não ganhei nada, perdi, mas, lembro a trova, a trova é a seguinte, Teatro:

O teatro é a grande arte.
Aquela que mais amamos,
Pois sempre e em toda parte
Todos nós representamos.

Se você ler sobre a filosofia da arte cênica, a primeira coisa que você vai aprender é que o teatro está na natureza humana, o ser humano gosta de representar, gosta de fingir. É por isso que todos os vícios que prejudicam a humanidade, o pior, na minha opinião, não é o álcool, não é o fumo, não é a cocaína, o pior vício é a mentira. Aquele que não tem combate, inclusive as religiões que deviam ensinar a ética, que deviam ensinar o ser humano para se libertar do fingimento, da mentira, para terem uma vida de relacionamento, entende? Com o seu próximo, na família, no trabalho, mais honesta, porque toda virtude começa pela honestidade, e a mentira é desonesta. E o pior tipo de desonestidade é a mentira, na qual se baseia a nossa civilização, todo mundo mente pra todo mundo, e as pessoas ainda dizem, algumas: “me engana, que eu gosto”. Eu não gosto disso. Eu não gosto de representar. Eu gosto de ser o que eu sou, com as minhas dúzias e com as minhas sobras, eu não engano ninguém. Eu bato forte, quando tem que bater, eu pago o preço, e o resto que quero que vá pra puta que pariu. E estou em paz com a minha consciência, estou em paz com Deus, estou em paz com meu destino. Eu sou esse tipo de cara, e, por causa disso, eu quis ser dramaturgo.
É bom que a gente conceitue bem o que é dramaturgia, porque a dramaturgia não é teatro, a dramaturgia é o elemento verbal do teatro, a arte cênica não precisa da dramaturgia, aliás, a dramaturgia está agora em queda. Todo mundo acha que o importante é a cena e não as palavras, mas eu escolhi ser dramaturgo, por quê? Porque toda a tradição do teatro, desde Ésquilo, desde Sófocles, desde Aristófanes, toda a tradição do teatro, como arte, é político, é de crítica dos costumes, da realidade para transformar. O teatro é a arte mais irreverente, de todas as artes. Você sabe que o compromisso da arte é com a beleza, não é com o discurso nenhum, com ideologia nenhuma. Mas o teatro não, o teatro é uma arte que sempre teve dramaturgia. Agora, para os teóricos que são uns imbeceotas, que é uma mistura de imbecil com idiota, e que são uns niilistas, querem chamar atenção pra si, é que criam modelos de práticas teatrais, que são do teatro do absurdo com o teatro nada com nada, quer dizer, teatro que, teoricamente, une nada com coisa nenhuma. Mas o teatro, em sua tradição mais digna, sempre criticou a sociedade, sempre. E daí a sua função pedagógica, cultural e até terapêutica, pros males que assolam a humanidade. Então eu sou apaixonado por esse teatro, que tem compromisso com verdade, e que planta as sementes da justiça e que recende o perfume do amor. Porque o amor é fruto de uma árvore que é a justiça, e que nasce da semente da verdade. Essas três coisas: amor, verdade e justiça são três ângulos, três aspectos de uma mesma coisa. Ninguém pode separar o amor da verdade e da justiça. Como ninguém pode separar a arte, que é beleza, do bem, que é verdade e justiça, ninguém pode.
Há um engano terrível, você que vai ser um doutor em artes cênicas, a maioria das pessoas, por niilismo, há um engano terrível das pessoas com relação a essa questão. Preste bem atenção. Todos os autores respeitáveis dizem: a arte, qualquer que ela seja, ela é autotélica, ela só tem compromisso consigo mesmo: a arte. Tem compromisso com a verdade? Não. A arte pode ser fantasia, na maioria dos casos as obras de arte são ficção, não tem compromisso com a verdade. Tem compromisso com o amor? Não. Pode-se fazer uma obra de arte belíssima, e a arte só tem compromisso com a beleza, já vimos, sobre o ódio. Tem compromisso com a justiça? Não. A arte é autotélica, a arte só tem compromisso consigo mesmo, e seu objetivo é a beleza, criar a beleza, inventar a beleza, por isso que toda arte tem que ser original, ou então ela não é arte, a arte não pode copiar, e não pode vender o seu direito à liberdade. A arte ou é livre, ou não é arte.
Muito bem, esse discurso é acadêmico, é muito bonito, é sustentado pelos doutores universitários, que às vezes são umas bestas, piores do que os analfabetos. Eu estou muito a vontade pra dizer isso, porque o meu filho é doutor da universidade, é pró-reitor de pesquisa, e eu tenho um solene desprezo pra toda essa gente. Então, veja bem, se você é um pensador, se você é um doutor, você tem que saber, eu estou dizendo isso pra um futuro doutor, eu estou falando, eu tenho o direito de lhe dar conselho, sabe por quê? Porque os velhos têm o direto de dar conselhos, já que não podem dar mais maus exemplos. Então, eu estou falando com doutor, não estou falando com você porque você é doutor, estou falando com você, porque você me procurou, você está interessado em me ouvir, e então estou vendo você como um filho, estou te alertando, inclusive, pra ter cuidado no futuro, pra desprezar o sucesso, porque tu só vais fazer sucesso como doutor, se tu entrar na linha do Nietzsche, acima do bem e do mal, entende? Porque quem é que faz sucesso, porque é diferente, que não acredita em ética e valores, se considerava acima do bem e do mal. Escreveu um livro com esse título, e a obra dele deu no que deu, foi nela que o Hitler se inspirou pra fazer os campos de concentração, baseado na teoria do Darwin, seleção natural, a luta das espécies. Fez o Nazismo pra criar uma raça pura, já que os mais fortes é que sobrevivem pela evolução natural. Então, é essa gente que faz sucesso. Tu vais ser um doutor, se tu quiseres fazer sucesso, tu tens que entrar nessa faixa. Eu te aconselho, como um velho, dá ao sucesso um solene desprezo, cospe na cara dessa gente que é respeitada, endeusada, porque tem muito conhecimento. O conhecimento, em si, como se diz, filosoficamente, não vale nada, o que vale é o uso que você faz do conhecimento, é como você lida, como você aproveita o que botaram na sua cabeça, ou você mesmo botou na sua cabeça. Essa é a diferença entre o saber, que é o conhecimento, e a sabedoria, que é a aplicação das coisas que você armazenou na memória. Então, procura cultivar essa atitude e vai em frente. Eu estou te dizendo isso com quase 80 anos e deu certo. Eu acredito isso porque na minha vida deu certo, eu sou um cara muito feliz, irreverente, muita gente me odeia, muita gente acha que eu sou um sonhador lírico, e eu não acho não. Eu acho que eu sou um cara que fez o que pôde. Eu estou muito feliz, porque eu acreditei não em doutores universitários, eu acreditei nas ideias que Deus me deu, e que estão aí, no ar. O Sócrates que tinha razão, que aprender é recordar, o homem precisa se voltar pra si mesmo, de se conhecer, e não ficar acreditando em tudo em que lhe dizem, porque as pessoas, de modo geral, metem. Por incrível que pareça, o ser humano sabendo tanta coisa não aprendeu a dizer: não sei. Então, a gente precisa fazer isso. E o teatro, pra mim, é a grande arte. Porque há, veja bem, há dois teatros: há o teatro natural, do ser humano, o ser humano é um artista que representa, ele vive representando, ele nunca diz a verdade, e a cultura consagra isso. E há um outro teatro, que é como a arte, a arte é uma coisa elaborada, não é vida. Quer dizer, desde o teatro, como arte, desde a Grécia antiga, desde o ditirambo, entende? O teatro tem dramaturgia, o teatro tem enredo, o teatro tem história. O teatro não é só representação, a arte de representar, não é só isso.
[...]
Bom, tudo o que eu estou te falando representa, constitui um discurso que fiz pra tu saberes que essa é a minha identificação pessoal. Depois, você vai analisar se valeu apena me entrevistar. Eu quero que você fique à vontade pra usar ou não usar as coisas que eu disse, só não quero que você distorça o espírito, pode montar como você quiser isso. Eu vi agora o roteiro das coisas que você quer me perguntar, não me preparei, não me interessa me preparar pra nada, eu vou falando o que vou pensando, porque eu acho que essa entrevista que você está fazendo comigo só tem algum valor se for alguma coisa autêntica, vai perguntando o que tiver na hora olhando pro papel, eu vou te respondendo o que vier na minha cabeça, sem olhar pra minha reputação que, na verdade, não tem muito valor, desde que ninguém xingue a minha mãe que já morreu e que era uma mulher honrada até onde eu soube, pode me criticar, não tem problema nenhum. Desculpa eu ter falado demais, sem me interromperes. Agora eu vou fazer uma pausa só pra te responder e dizer o que tu me perguntares.

[...]




[1] TOURINHO, Nazareno. Entrevista. Entrevistador: Denis Bezerra. Transcrição: Denis Bezerra e Ney Paiva. Belém, 31/10/2012.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Ato performativo "Memórias de NazEREZINHX".

Este trabalho performativo foi realizado no dia da festa do Círio de Nazaré, 08/110/2017. Desde 2016, surgiu a vontade de realizar um trabalho artístico pessoal em homenagem à Santa católica, mas atravessado pela religiosidade afro-brasileira, Umbanda, da qual sou praticante.
Como um processo de maturação artística e religiosa, as vontades, as motivações para a realização do trabalho performativo foram brotando, como um ritual: o pulular das ideias; a sistematização das ações; as intensões; etc.
Queria algo que partisse da minha individualidade, porém, com uma pegada coletiva. Daí vieram muitas ideias, fundamentadas, principalmente, pelo tom espetacular. Contudo, fui percebendo, juntamente com Rosilene Cordeiro, irmã de fé, de religiosidade, de vida, que as questões fundamentais para o trabalho eram  as de nível pessoal.
Rosilene e eu trabalhamos muito dessa maneira, compartilhamos os desejos. Ela vai provocando em mim muitas inquietações, me colocando em linhas limítrofes. Assim, fechamos uma ideia. 
Os registros abaixo são resultado desse Ato Performativo que realizei em homenagem às memórias de infância presente na Festa do Círio de Nazaré. São memórias coletivas, mas, acima de tudo, são as minhas memórias de infância.
Fotos-performance: Rosilene Cordeiro.