Teatro Providência no Largo das Mercês - Joseph Léon Righini.

Teatro Providência no Largo das Mercês - Joseph Léon Righini.
Teatro Providência no Largo das Mercês - Litografia de Joseph Léon Righini. Fonte: Centro de Memória da UFPA

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O Teatro Nazareno e a produção de teatro de revista.

Quando foi no onze

do mês de outubro,

os grevistas cuma adubo

do seu dereto leá

fizero uma parede

cum bem tijolo.

p’ro modi não i no Bolo

qui o gerente quis li dá.




E os bondi i tudo inté

virô pra Nazaré.

Alberto Martins (Revista-comédia Sua Majestade, o dinheiro).



Todo mês de outubro, a capital paraense vive as comemorações do Círio de Nazaré, uma festa popular, iniciada no século XVIII, e que passou por diversas mudanças ao longo dos séculos. Considerada, hoje, como a maior festa católica do país, com onze procissões e diversas atividades religiosas e “profanas”, o Círio possui muitas histórias, que fazem parte de sua trajetória.

Uma dessas memórias é o Teatro Nazareno, que até a década de 70 do século XX, segundo o historiador Vicente Salles (1994), movimentou a produção artístico-cultural de Belém, durante a quadra Nazarena, momento de comemorações da Festa da padroeira dos paraenses. Compartilho aqui, algumas páginas sobre esse importante circuito cultural da cidade, que apresentei em minha tese de doutorado Vanguardismos e Modernidades: cenas teatrais em Belém do Pará (1941-1968), defendida em março de 2016, e realizada no Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia/PPHIST da UFPA.

O Teatro Nazareno está ligado às formas do teatro popular, surgidas a partir das manifestações profanas do Círio de Nazaré, tradição de origem portuguesa, iniciada no século XVII[1]. Junto com as atividades religiosas, marcadas pelas novenas[2] e pelas procissões que compõem as festividades de Nazaré, a padroeira dos paraenses, organizavam-se, no Largo, do mesmo nome, ações ligadas aos divertimentos dos romeiros, que, durante quinze dias, celebram o encontro com sua fé.

Juntos aos divertimentos profanos, segundo Salles[3], iniciaram-se atividades comerciais generalizadas, que vão desde objetos do imaginário católico, como imagens da Santa, até comidas regionais. Junto a isso, os artistas “populares”, compostos na sua maioria por artista de circo, mambembes, saltimbancos, etc., começavam a aparecer em tal contexto, com apresentações musicais, cenas de humor, jogos, tudo aquilo que estava ligado à tradição das manifestações cênicas populares.

Ainda segundo Salles (1994), a partir de consulta ao jornal Treze de Maio, de 1840, já havia, junto com a programação religiosa, atividades profanas, com “representação de algumas peças teatrais no barracão da irmandade por ‘mui dignos festejos’, nas noites de 3, 6 e 10 de outubro, além de danças desempenhadas por jovens curiosos nas noites de 4 e 7, bailes, etc.”[4]. Em uma notícia do mesmo jornal, de 1854, observa-se o anúncio de atividades festivas, com o intuito de divertir a população.



 
    Figura 01- Festa de Nazareth (1854).
    Fonte: Treze de Maio[5].



De antigo costume, nos Domingos que precedem a esta festa têm os diretores dela buscado atrair para o Arraial a concorrência do povo, e seguramente pela razão de oferecer à população da Cidade um inocente passatempo, e proporcionar-lhe uma diversão às fadigas do trabalho da semana, e isto como para servir de preâmbulo, ou introdução à mesma festa.
A atual diretoria desejando guardar esse costume, da bondade de S.S. Ex.ª os Srs. Presidente e Comandante das Armas da Província, obteve, que nos Domingos que seguem, e até ao tempo da festa, nas tardes em que não houver chuva uma banda de música fosse executar no arraial lindas e variadas peças, o que se faz público para conhecimento dos diletantes[6].



Além de anunciar uma programação voltada para o lazer da população, carregada de fadigas do dia-a-dia, a mesma matéria proporciona uma leitura de como a festa se organizava, em meados do século XIX, a partir da opinião pública, principalmente com relação às condições meteorológicas da cidade, marcada, tradicionalmente, pelas chuvas das tardes. A organização da festa sugere que seja pela parte da manhã, pois à tarde, caso permanecesse a tradição, as mulheres, “sexo belo”, não poderiam agraciar a procissão com suas belezas trajadas pelos vestidos da época:



Por esta mesma folha já a diretoria também fez público que o Círio terá lugar a 22 vindouro mês de Outubro; e que pelas razões que produziu deseja fazê-lo, antes de manhã que de tarde: de muitos tem a diretoria ouvido dar assentimento à essa inovação; mas o belo sexo lhe recusa o seu, entretanto há certo, que para ela a diretoria muito atendeu as conveniências da belezas; porque as chuvas entres nós quase infalíveis nas tardes de conjunção da lua, que é quando se faz o círio, para que a festa seja por ela iluminada, as chuvas não só despontam a procissão, e estragam os seus ornamentos, se não também e desapiedadamente ofuscam o brilhantismo que ela recebe do belo sexo[7].



Aos poucos as manifestações artísticas no Largo de Nazaré foram crescendo, durante as festas da quadra nazarena, marcadas pela presença de artistas do teatro popular. Com isso, a paisagem desse local foi modificando-se, para atender às apresentações teatrais. Salles relata que



As primeiras exibições no Pavilhão de Flora, o primeiro tablado especialmente construído no arraial, eram variadas e o interesse em torno delas perdurou durante muito tempo. Mas havia outras atrações: circos, carrosséis, tivolis, saltimbancos, música nos coretos, balões, além do jogo e do comércio[8].


 
Figura 02 -Pavilhão de Flora no largo de Nazaré[9].
Fonte: Livro Épocas do Teatro no Grão-Pará ou Apresentação do Teatro de Época.



Com a expansão e transformações urbanas ocorridas, a partir da segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da economia da borracha, o nazareno passou a agregar, além das formas populares, apresentações de companhias estrangeiras e nacionais, que começaram a circular pela cidade. Assim, novos gêneros passam a alimentar a produção cultural, com as operetas e as revistas. Além das formas populares locais, a partir da criação do Teatro Chalet, localizado em torno da Largo de Nazaré, que passou a abrigar as companhias e trabalhos franceses, a partir da década de 1870, esses novos gêneros criaram seus públicos.
Dessa maneira, o circuito das atividades artísticas passou a congregar as variadas formas do teatro popular, tornando-se, após a crise da borracha, o lugar da efervescência cultural em Belém. Nas três primeiras décadas do século XX, o teatro nazareno fortaleceu-se, tornando-se espaço de múltiplas atividades culturais, e proporcionou à cidade um legado histórico.

       Figura 03Peça Aguenta a Mão.
      Fonte: Jornal A Vanguarda[10].

Figura 04- Cena da revista “Aguenta a Mão”, que está sendo levada com sucesso no Variedades pela Troupe Cantuária.

Fonte: Jornal A Vanguarda[11].



O anúncio acima, além de divulgar a apresentação da revista fantasia Aguenta a Mão, da Troupe Cantuária, ressalta que ela se destaca pela leveza, no sentido de não ser enfadonha, mas original, com humor e, principalmente, sem a presença de pornografia. Esse último ponto permitiu a liberação da censura policial, que na época do Estado Novo era uma ação dos órgãos oficiais. Isso evidencia a forte presença da intervenção do estado nas atividades culturais.

A presença do gênero revista, na programação da quadra nazarena, representa a produção artística-cultural brasileira da primeira metade do século XX, na qual as formas do teatro popular tornaram-se símbolos das culturas, marcadas pela presença, no caso do Pará, de crises econômicas, que ocasionou a reorganização da paisagem urbana e social.

O teatro de revista, no Brasil, tem seu início ainda no século XIX, e foi associado, pelas elites intelectualizadas como uma forma inferior, voltadas para o entretenimento de segmentos sociais, pensados por eles, como mais simples, sem acesso aos produtos da cultura erudita, mas que representava uma sociedade em transformação, principalmente pela burguesia emergente e pela aristocracia em reconfiguração. Neyde Veneziano[12] afirma que o século XIX foi momento em que o Brasil passou por uma reconfiguração em suas bases estruturais, com a formação de um país pequeno-burguês em ascensão, fato este que proporcionou, no teatro, a receptividade de um teatro popular.

O público das revistas foi responsável pelo seu fortalecimento, tornando-o vivo, com prestígio que o fez representante de uma época da sociedade brasileira. Mesmo com a crítica dos intelectuais brasileiros, que a viam como um gênero menor, caracterizado pelo intuito de provocar o riso nos espectadores, esse gênero possuía convenções próprias, ocasionado pela organização de regras, pelos artistas envolvidos com ele, principalmente os escritores de textos. Criou-se, assim, um sistema, alimentado pelo gosto do público burguês e pela presença de artistas, companhias, dramaturgos que o tornaram um elemento importante da cultura brasileira, que vai dos meados do século XIX à primeira metade do XX[13].

Suzane Pereira[14], ao estudar a produção de teatro de revista paraense, destaca como o gênero teria se estabelecido nas práticas artística da cidade de Belém, até a década de 1930, com a produção do poeta paraense Antônio Tavernard, principalmente a obra A Casa da Viúva Costa[15].

O teatro nazareno, como aponta Salles, até a primeira década do século XX, mantinha-se com repertório de comédias, com poucas produções locais, que a partir da produção de Eduardo Nunes, visto anteriormente, começa a se fortalecer. A maioria dos trabalhos artísticos, dessa época, estavam ligados às formas populares, como circo, shows de músicas, mas, principalmente, pelo teatro de revista.

                            Figura 05 – Palace Cassino.             

 
                            Figura 06- Peça Bonequinha de Peixe. 
                           Fonte: A Vanguarda[16].

O teatro nazareno se manteve ativo até o ano de 1970, quando o prefeito Mauro Porto reestruturou o Largo de Nazaré, ao retirar os coretos, além de projetar uma nova praça, o que viria a se tornar o Centro Arquitetônico de Nazaré – CAN[17]. Além disso, como relata Salles, o gestor de Belém era contra à manifestação teatral que ocorria durante as festividades do Círio de Nazaré[18]. O historiador destaca que Belém, junto com o Rio de Janeiro, fora, talvez, uma das poucas cidades brasileiras a manter vivo o teatro de revista.



Algumas tentativas para restaurar o teatro nazareno resultaram infrutíferas. Ele sempre contou com amigos e inimigos. A sua trajetória corre paralela ao teatro mambembe que se fez ou se praticou em Belém, e começa a ser detalhada principalmente a partir de 1912. Não cabe aqui, portanto, maiores considerações. Cabe apenas declarar que seu fim foi também imposição do arbítrio do poder[19].



Representante de uma época, o teatro nazareno passou por mudanças, adaptações, até chegar ao seu fim, nos anos 1970, ou se poderia dizer, transformou-se, porque as festividades do Círio de Nazaré continuam, e a sua parte profana também, mas com outras formas e gêneros. O próprio teatro de revista mudou, hoje não é mais um gênero presente com vivacidade nos palcos brasileiros. Ele se adaptou às mudanças da sociedade, e também de espaço de produção e circulação, com a expansão das rádios e com a criação da televisão, que chegou na capital paraense no ano de 1962[20].

Esse percurso sobre as formas populares do teatro paraense, passando, principalmente, pelo teatro de pássaros e o nazareno, suas organizações, suas relações com a história de Belém, ajudam a criar um painel do que se pode chamar de tradição teatral paraense. Esses fatos ajudarão na leitura das práticas culturais dos movimentos de teatro de estudantes, objeto desta pesquisa, que a partir dos anos 1940, passam a pensar e produzir novas formas teatrais em Belém, configurando os vanguardismos e modernidades dos grupos amadores locais.







[1] CORREA, Ivone Maria Xavier de Amorim. Círio de Nazaré: A Festa da Fé e suas (re) significações culturais – 1970-2008. Tese de doutorado, História, Programa de Pós-graduação em História Social, 2010.

[2] As novenas são atividades religiosas, que funcionam como preparativos para as festividades de um Santo padroeiro. Elas acontecem em igrejas, comunidade, mas principalmente nas casas de famílias católicas.

[3] SALLES, Vicente. Op. Cit., (p.387).

[4] Idem.

[5] Disponível na Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

[6] S/a. FESTA DE NAZARETH. Jornal Treze de Maio, quinta-feira, 14/09/1854, (p.02).

[7] Idem.

[8] SALLES, Vicente. Op. Cit., (p.388).

[9] Idem, (p.390).

[10] S/a. Theatro Variedades: “Aguenta a Mão”. Jornal A Vanguarda, quarta-feira, 12/10/1938 (última página). O anúncio relata: “Prosseguem com entusiasmo os festejos nazarenos. O arraial vai mostrando mais animação, tendo sido a noite de ontem mais movimentada. Hoje, com certeza, teremos uma noite cheia, pois as famílias aguardam sempre a primeira quarta-feira para percorrer as diversões. NO VARIEDADES, A TROUPE CANTUÁRIA, COM A REVISTA “AGUENTA A MÃO” –Está causando o mais famoso sucesso a encenação da engraçada revista “Aguenta a Mão”, no Theatro Variedades, pela trupe Cantuária. Essa revista está alcançando as simpatias do público pelas variedades de cenas e pelo excelente desempenho”.

[11] S/a. Cena da revista “Aguenta a Mão”, que está sendo levada com sucesso no Variedades pela Troupe Cantuária. Jornal A Vanguarda, sexta-feira, 07/10/1938 (última página). O Círio de 1938 aconteceu em 09 de outubro, e os anúncios em A Vanguarda sobre as atividades artísticas da festa começaram no dia 05 do mesmo mês. Eles continuaram até o dia 14, mas os festejos duram até 24 de outubro, sempre com apresentações teatrais e musicais. Paralelo a esse circuito, o Teatro da Paz continuava sua rotina de apresentações, ligadas à forma erudita, principalmente com Recitais de música erudita.

[12] VENEZIANO, Neyde. O Teatro de Revista no Brasil: dramaturgias e convenções. São Paulo: Edusp. 1991, (p.25).

[13] Como o objetivo deste trabalho é analisar as práticas teatrais no Pará pensadas por grupos de intelectuais que viam nas formas do teatro erudito uma maneira de transformações sociais e principalmente estéticas, para artes cênicas, não se deterá em desenvolver um estudo mais detalhado sobre a revista. O intuito, aqui, é mostrar, de maneira geral, o que esse gênero representou, principalmente na cena local, como símbolo de práticas culturais ligadas ao chamado teatro popular, que se tornou a tradição combatida pelos movimentos de vanguardismos e modernidades em Belém.

[14] PEREIRA, Suzane Cláudia Gomes. VOCÊ PENSA QUE AQUI É A CASA DA VIÚVA COSTA?: o Teatro de Revista Paraense na Cena De Antônio Tavernard. Tese de doutorado, Comunicação, Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, 2013. 

[15] Sobre essa peça a estudiosa relata: “A Casa da Viúva Costa, comédia-revista dividida em um prólogo e três atos, sem divisão de quadros, satiriza a sociedade paraense, com situações hilariantes de duplo sentido, os quiproquós, e com frases de efeito tão a gosto do brasileiro. A obra é uma revista de costumes sutil e maliciosa, cuja ação se passa em Belém, numa casa de pensão administrada pelo personagem viúva, elemento presente no título, que mantém um romance com um pensionista”. PEREIRA, Suzane. Op. Cit., (p.115).

[16] S/a. Anúncio. Jornal A Vanguarda, quarta-feira, 04/10/1939, (última página).

[17] Segundo a historiadora Ivone Xavier, “em 1982, na gestão de Alacid Nunes, governador do Pará, é construído, no lugar da antiga Praça Justo Chermont, o Centro Arquitetônico de Nazaré (CAN), que, com traços arquitetônicos modernos, indica que as propostas de renovação urbana de Belém têm como um de seus pontos fundamentais a modernização dos espaços da Festa. O centro possui, em sua área central, um altar elevado, revestido de vidros transparentes, e uma concha acústica onde são realizados espetáculos culturais de igrejas e colégios católicos da cidade. É também na concha acústica que ocorre o Círio Musical”. CORREA, Ivone Maria Xavier de Amorim. CÍRIO DE NAZARÉ:  a Festa da Fé e suas (re) significações culturais – 1970-2008. Tese de doutorado, História, Programa de Pós-graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.

[18] O pesquisador Eidorfe Moreira, em seu estudo sobre o Círio de Nazaré, a importância dessa festa para as artes e a literatura paraense. “Antigamente havia até mesmo uma verdadeira estação literária motivada por ele e pela festividade, estação a que não faltavam inclusive peças teatrais de autores e atores regionais. Em sua feição popular pelo menos, muito deve o Teatro no Pará à festa de Nazaré” (MOREIRA, Eidorfe. Visão geo-social do Círio. In: Obras reunidas de Eidorfe Moreira, Vol. IV. Belém: CEJUP, 1989, p.18). Essa perspectiva apontada pelo autor refere-se ao Teatro Nazareno, momento de grande atividade teatral na cidade, que movimentava as atividades artísticas da festa do Círio de Nazaré.

[19] SALLES, Vicente. Op. Cit., (p.404).


[20] A chegada da TV no Pará será abordada mais a frente, no capítulo sobre o Norte Teatro Escola do Pará, quando membros desse grupo participaram desse projeto, na fase inicial, e também, com a presença de artistas formados pelo Serviço de Teatro da Universidade do Pará, a partir de 1962.

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