Quando foi no onze
do mês de outubro,
os grevistas cuma adubo
do seu dereto leá
fizero uma parede
cum bem tijolo.
p’ro modi não i no Bolo
qui o gerente quis li dá.
E os bondi i tudo inté
virô pra Nazaré.
Alberto Martins (Revista-comédia Sua Majestade, o
dinheiro).
Todo mês de outubro, a
capital paraense vive as comemorações do Círio de Nazaré, uma festa popular,
iniciada no século XVIII, e que passou por diversas mudanças ao longo dos
séculos. Considerada, hoje, como a maior festa católica do país, com onze
procissões e diversas atividades religiosas e “profanas”, o Círio possui muitas
histórias, que fazem parte de sua trajetória.
Uma dessas memórias é o
Teatro Nazareno, que até a década de 70 do século XX, segundo o historiador
Vicente Salles (1994), movimentou a produção artístico-cultural de Belém,
durante a quadra Nazarena, momento de comemorações da Festa da padroeira dos
paraenses. Compartilho aqui, algumas páginas sobre esse importante circuito
cultural da cidade, que apresentei em minha tese de doutorado Vanguardismos e Modernidades: cenas teatrais
em Belém do Pará (1941-1968), defendida em março de 2016, e realizada no
Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia/PPHIST da UFPA.
O Teatro Nazareno está
ligado às formas do teatro popular, surgidas a partir das manifestações
profanas do Círio de Nazaré, tradição de origem portuguesa, iniciada no século
XVII[1]. Junto
com as atividades religiosas, marcadas pelas novenas[2] e pelas
procissões que compõem as festividades de Nazaré, a padroeira dos paraenses,
organizavam-se, no Largo, do mesmo nome, ações ligadas aos divertimentos dos
romeiros, que, durante quinze dias, celebram o encontro com sua fé.
Juntos aos divertimentos
profanos, segundo Salles[3],
iniciaram-se atividades comerciais generalizadas, que vão desde objetos do
imaginário católico, como imagens da Santa, até comidas regionais. Junto a
isso, os artistas “populares”, compostos na sua maioria por artista de circo,
mambembes, saltimbancos, etc., começavam a aparecer em tal contexto, com
apresentações musicais, cenas de humor, jogos, tudo aquilo que estava ligado à
tradição das manifestações cênicas populares.
Ainda segundo Salles (1994),
a partir de consulta ao jornal Treze de Maio, de 1840, já havia, junto com a
programação religiosa, atividades profanas, com “representação de algumas peças teatrais no barracão da
irmandade por ‘mui dignos festejos’, nas noites de 3, 6 e 10 de outubro, além
de danças desempenhadas por jovens curiosos nas noites de 4 e 7, bailes, etc.”[4]. Em uma
notícia do mesmo jornal, de 1854, observa-se o anúncio de atividades festivas,
com o intuito de divertir a população.
De antigo costume, nos
Domingos que precedem a esta festa têm os diretores dela buscado atrair para o
Arraial a concorrência do povo, e seguramente pela razão de oferecer à
população da Cidade um inocente passatempo, e proporcionar-lhe uma diversão às
fadigas do trabalho da semana, e isto como para servir de preâmbulo, ou
introdução à mesma festa.
A atual diretoria desejando guardar esse costume, da bondade de S.S. Ex.ª os Srs. Presidente e Comandante das Armas da Província, obteve, que nos Domingos que seguem, e até ao tempo da festa, nas tardes em que não houver chuva uma banda de música fosse executar no arraial lindas e variadas peças, o que se faz público para conhecimento dos diletantes[6].
A atual diretoria desejando guardar esse costume, da bondade de S.S. Ex.ª os Srs. Presidente e Comandante das Armas da Província, obteve, que nos Domingos que seguem, e até ao tempo da festa, nas tardes em que não houver chuva uma banda de música fosse executar no arraial lindas e variadas peças, o que se faz público para conhecimento dos diletantes[6].
Além de anunciar uma
programação voltada para o lazer da população, carregada de fadigas do
dia-a-dia, a mesma matéria proporciona uma leitura de como a festa se
organizava, em meados do século XIX, a partir da opinião pública,
principalmente com relação às condições meteorológicas da cidade, marcada,
tradicionalmente, pelas chuvas das tardes. A organização da festa sugere que
seja pela parte da manhã, pois à tarde, caso permanecesse a tradição, as
mulheres, “sexo belo”, não poderiam agraciar a procissão com suas belezas
trajadas pelos vestidos da época:
Por esta mesma folha
já a diretoria também fez público que o Círio terá lugar a 22 vindouro mês de
Outubro; e que pelas razões que produziu deseja fazê-lo, antes de manhã que de
tarde: de muitos tem a diretoria ouvido dar assentimento à essa inovação; mas o
belo sexo lhe recusa o seu, entretanto há certo, que para ela a diretoria muito
atendeu as conveniências da belezas; porque as chuvas entres nós quase
infalíveis nas tardes de conjunção da lua, que é quando se faz o círio, para
que a festa seja por ela iluminada, as chuvas não só despontam a procissão, e
estragam os seus ornamentos, se não também e desapiedadamente ofuscam o
brilhantismo que ela recebe do belo sexo[7].
Aos poucos as manifestações
artísticas no Largo de Nazaré foram crescendo, durante as festas da quadra
nazarena, marcadas pela presença de artistas do teatro popular. Com isso, a
paisagem desse local foi modificando-se, para atender às apresentações
teatrais. Salles relata que
As primeiras
exibições no Pavilhão de Flora, o primeiro tablado especialmente construído no
arraial, eram variadas e o interesse em torno delas perdurou durante muito
tempo. Mas havia outras atrações: circos, carrosséis, tivolis, saltimbancos,
música nos coretos, balões, além do jogo e do comércio[8].
Figura 02 -Pavilhão de Flora no largo de Nazaré[9].
Fonte: Livro Épocas do Teatro no Grão-Pará ou Apresentação do Teatro de Época.
Fonte: Livro Épocas do Teatro no Grão-Pará ou Apresentação do Teatro de Época.
Com a expansão e
transformações urbanas ocorridas, a partir da segunda metade do século XIX, com
o desenvolvimento da economia da borracha, o nazareno passou a agregar, além das
formas populares, apresentações de companhias estrangeiras e nacionais, que
começaram a circular pela cidade. Assim, novos gêneros passam a alimentar a
produção cultural, com as operetas e as revistas. Além das formas populares
locais, a partir da criação do Teatro Chalet, localizado em torno da Largo de
Nazaré, que passou a abrigar as companhias e trabalhos franceses, a partir da
década de 1870, esses novos gêneros criaram seus públicos.
Dessa maneira, o circuito
das atividades artísticas passou a congregar as variadas formas do teatro
popular, tornando-se, após a crise da borracha, o lugar da efervescência
cultural em Belém. Nas três primeiras décadas do século XX, o teatro nazareno
fortaleceu-se, tornando-se espaço de múltiplas atividades culturais, e proporcionou
à cidade um legado histórico.
Figura 04- Cena
da revista “Aguenta a Mão”, que está sendo levada com sucesso no Variedades
pela Troupe Cantuária.
Fonte: Jornal
A Vanguarda[11].
O anúncio acima, além de
divulgar a apresentação da revista fantasia Aguenta
a Mão, da Troupe Cantuária, ressalta que ela se destaca pela leveza, no
sentido de não ser enfadonha, mas original, com humor e, principalmente, sem a
presença de pornografia. Esse último ponto permitiu a liberação da censura
policial, que na época do Estado Novo era uma ação dos órgãos oficiais. Isso
evidencia a forte presença da intervenção do estado nas atividades culturais.
A presença do gênero
revista, na programação da quadra nazarena, representa a produção
artística-cultural brasileira da primeira metade do século XX, na qual as
formas do teatro popular tornaram-se símbolos das culturas, marcadas pela
presença, no caso do Pará, de crises econômicas, que ocasionou a reorganização
da paisagem urbana e social.
O teatro de revista, no
Brasil, tem seu início ainda no século XIX, e foi associado, pelas elites
intelectualizadas como uma forma inferior, voltadas para o entretenimento de
segmentos sociais, pensados por eles, como mais simples, sem acesso aos
produtos da cultura erudita, mas que representava uma sociedade em
transformação, principalmente pela burguesia emergente e pela aristocracia em
reconfiguração. Neyde Veneziano[12] afirma
que o século XIX foi momento em que o Brasil passou por uma reconfiguração em
suas bases estruturais, com a formação de um país pequeno-burguês em ascensão,
fato este que proporcionou, no teatro, a receptividade de um teatro popular.
O público das revistas foi
responsável pelo seu fortalecimento, tornando-o vivo, com prestígio que o fez
representante de uma época da sociedade brasileira. Mesmo com a crítica dos
intelectuais brasileiros, que a viam como um gênero menor, caracterizado pelo
intuito de provocar o riso nos espectadores, esse gênero possuía convenções
próprias, ocasionado pela organização de regras, pelos artistas envolvidos com
ele, principalmente os escritores de textos. Criou-se, assim, um sistema,
alimentado pelo gosto do público burguês e pela presença de artistas,
companhias, dramaturgos que o tornaram um elemento importante da cultura
brasileira, que vai dos meados do século XIX à primeira metade do XX[13].
Suzane Pereira[14], ao
estudar a produção de teatro de revista paraense, destaca como o gênero teria
se estabelecido nas práticas artística da cidade de Belém, até a década de
1930, com a produção do poeta paraense Antônio Tavernard, principalmente a obra
A Casa da Viúva Costa[15].
O teatro nazareno, como
aponta Salles, até a primeira década do século XX, mantinha-se com repertório
de comédias, com poucas produções locais, que a partir da produção de Eduardo
Nunes, visto anteriormente, começa a se fortalecer. A maioria dos trabalhos
artísticos, dessa época, estavam ligados às formas populares, como circo, shows
de músicas, mas, principalmente, pelo teatro de revista.
Figura 05 – Palace Cassino.
O teatro nazareno se manteve
ativo até o ano de 1970, quando o prefeito Mauro Porto reestruturou o Largo de
Nazaré, ao retirar os coretos, além de projetar uma nova praça, o que viria a
se tornar o Centro Arquitetônico de Nazaré – CAN[17]. Além
disso, como relata Salles, o gestor de Belém era contra à manifestação teatral
que ocorria durante as festividades do Círio de Nazaré[18]. O
historiador destaca que Belém, junto com o Rio de Janeiro, fora, talvez, uma
das poucas cidades brasileiras a manter vivo o teatro de revista.
Algumas tentativas
para restaurar o teatro nazareno resultaram infrutíferas. Ele sempre contou com
amigos e inimigos. A sua trajetória corre paralela ao teatro mambembe que se
fez ou se praticou em Belém, e começa a ser detalhada principalmente a partir
de 1912. Não cabe aqui, portanto, maiores considerações. Cabe apenas declarar
que seu fim foi também imposição do arbítrio do poder[19].
Representante de uma época,
o teatro nazareno passou por mudanças, adaptações, até chegar ao seu fim, nos
anos 1970, ou se poderia dizer, transformou-se, porque as festividades do Círio
de Nazaré continuam, e a sua parte profana também, mas com outras formas e
gêneros. O próprio teatro de revista mudou, hoje não é mais um gênero presente
com vivacidade nos palcos brasileiros. Ele se adaptou às mudanças da sociedade,
e também de espaço de produção e circulação, com a expansão das rádios e com a
criação da televisão, que chegou na capital paraense no ano de 1962[20].
Esse percurso sobre as
formas populares do teatro paraense, passando, principalmente, pelo teatro de
pássaros e o nazareno, suas organizações, suas relações com a história de
Belém, ajudam a criar um painel do que se pode chamar de tradição teatral
paraense. Esses fatos ajudarão na leitura das práticas culturais dos movimentos
de teatro de estudantes, objeto desta pesquisa, que a partir dos anos 1940,
passam a pensar e produzir novas formas teatrais em Belém, configurando os
vanguardismos e modernidades dos grupos amadores locais.
[1] CORREA, Ivone Maria
Xavier de Amorim. Círio de Nazaré: A
Festa da Fé e suas (re) significações culturais – 1970-2008. Tese de doutorado,
História, Programa de Pós-graduação em História Social, 2010.
[2] As novenas são atividades
religiosas, que funcionam como preparativos para as festividades de um Santo
padroeiro. Elas acontecem em igrejas, comunidade, mas principalmente nas casas
de famílias católicas.
[3] SALLES, Vicente. Op. Cit., (p.387).
[4] Idem.
[5] Disponível na Hemeroteca
Digital da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
[6] S/a. FESTA DE NAZARETH. Jornal Treze de Maio, quinta-feira, 14/09/1854,
(p.02).
[7] Idem.
[8] SALLES, Vicente. Op. Cit., (p.388).
[9] Idem, (p.390).
[10] S/a. Theatro Variedades: “Aguenta a Mão”. Jornal A Vanguarda,
quarta-feira, 12/10/1938 (última página). O anúncio relata: “Prosseguem com
entusiasmo os festejos nazarenos. O arraial vai mostrando mais animação, tendo
sido a noite de ontem mais movimentada. Hoje, com certeza, teremos uma noite
cheia, pois as famílias aguardam sempre a primeira quarta-feira para percorrer
as diversões. NO VARIEDADES, A TROUPE CANTUÁRIA, COM A REVISTA “AGUENTA A MÃO”
–Está causando o mais famoso sucesso a encenação da engraçada revista “Aguenta
a Mão”, no Theatro Variedades, pela trupe Cantuária. Essa revista está
alcançando as simpatias do público pelas variedades de cenas e pelo excelente
desempenho”.
[11] S/a. Cena da revista “Aguenta a Mão”, que está sendo levada com sucesso no
Variedades pela Troupe Cantuária. Jornal A Vanguarda, sexta-feira,
07/10/1938 (última página). O Círio de 1938 aconteceu em 09 de outubro, e os
anúncios em A Vanguarda sobre as atividades artísticas da festa começaram no
dia 05 do mesmo mês. Eles continuaram até o dia 14, mas os festejos duram até
24 de outubro, sempre com apresentações teatrais e musicais. Paralelo a esse
circuito, o Teatro da Paz continuava sua rotina de apresentações, ligadas à
forma erudita, principalmente com Recitais de música erudita.
[12] VENEZIANO, Neyde. O Teatro de Revista no Brasil:
dramaturgias e convenções. São Paulo: Edusp. 1991, (p.25).
[13] Como o objetivo deste
trabalho é analisar as práticas teatrais no Pará pensadas por grupos de
intelectuais que viam nas formas do teatro erudito uma maneira de transformações
sociais e principalmente estéticas, para artes cênicas, não se deterá em
desenvolver um estudo mais detalhado sobre a revista. O intuito, aqui, é
mostrar, de maneira geral, o que esse gênero representou, principalmente na
cena local, como símbolo de práticas culturais ligadas ao chamado teatro
popular, que se tornou a tradição combatida pelos movimentos de vanguardismos e
modernidades em Belém.
[14] PEREIRA, Suzane Cláudia
Gomes. VOCÊ PENSA QUE AQUI É A CASA DA
VIÚVA COSTA?: o Teatro de Revista Paraense na Cena De Antônio Tavernard.
Tese de doutorado, Comunicação, Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da
Universidade Federal da Bahia, 2013.
[15] Sobre essa peça a
estudiosa relata: “A Casa da Viúva Costa,
comédia-revista dividida em um prólogo e três atos, sem divisão de quadros,
satiriza a sociedade paraense, com situações hilariantes de duplo sentido, os
quiproquós, e com frases de efeito tão a gosto do brasileiro. A obra é uma
revista de costumes sutil e maliciosa, cuja ação se passa em Belém, numa casa
de pensão administrada pelo personagem viúva, elemento presente no título, que
mantém um romance com um pensionista”. PEREIRA, Suzane. Op. Cit., (p.115).
[16] S/a. Anúncio. Jornal A Vanguarda, quarta-feira, 04/10/1939, (última
página).
[17] Segundo a historiadora Ivone Xavier,
“em 1982, na gestão de Alacid Nunes, governador do Pará, é construído, no lugar
da antiga Praça Justo Chermont, o Centro Arquitetônico de Nazaré (CAN), que,
com traços arquitetônicos modernos, indica que as propostas de renovação urbana
de Belém têm como um de seus pontos fundamentais a modernização dos espaços da
Festa. O centro possui, em sua área central, um altar elevado, revestido de
vidros transparentes, e uma concha acústica onde são realizados espetáculos
culturais de igrejas e colégios católicos da cidade. É também na concha
acústica que ocorre o Círio Musical”. CORREA, Ivone Maria Xavier de Amorim. CÍRIO DE NAZARÉ: a Festa da Fé e suas (re)
significações culturais – 1970-2008. Tese de doutorado, História, Programa de Pós-graduação em
História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.
[18] O pesquisador Eidorfe Moreira, em seu
estudo sobre o Círio de Nazaré, a importância dessa festa para as artes e a
literatura paraense. “Antigamente havia até mesmo uma verdadeira estação
literária motivada por ele e pela festividade, estação a que não faltavam
inclusive peças teatrais de autores e atores regionais. Em sua feição popular
pelo menos, muito deve o Teatro no Pará à festa de Nazaré” (MOREIRA, Eidorfe.
Visão geo-social do Círio. In: Obras reunidas de Eidorfe Moreira, Vol. IV.
Belém: CEJUP, 1989, p.18). Essa perspectiva apontada pelo autor refere-se ao
Teatro Nazareno, momento de grande atividade teatral na cidade, que movimentava
as atividades artísticas da festa do Círio de Nazaré.
[19] SALLES, Vicente. Op. Cit., (p.404).
[20] A chegada da TV no Pará
será abordada mais a frente, no capítulo sobre o Norte Teatro Escola do Pará,
quando membros desse grupo participaram desse projeto, na fase inicial, e
também, com a presença de artistas formados pelo Serviço de Teatro da
Universidade do Pará, a partir de 1962.
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